Modelos de mundo como modelos de organização: framing global e ativismo transnacional no movimento negro brasileiro

World models as organizational models: global framing and transnational activism in the brazilian black movement

 

 

Alexandre Reis Rosa

Professor do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGAdm/UFES). Doutor em Administração Pública e Governo pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EAESP/FGV). Email: alexandre.r.rosa@ufes.br. ORCID: 0000-0003-0619-7433

 

 

Resumo: O objetivo deste artigo é explorar a apropriação que o movimento negro brasileiro faz dos conteúdos diaspóricos. Ao longo da história a diáspora negra produziu diferentes significados do que é ser negro, do que é o racismo e de como combatê-lo. Entre estas visões está o Atlântico Negro que se apresenta como uma macroestrutura capaz de influenciar a formação de diversos frames ao redor do mundo. Os frames são esquemas interpretativos, visões de mundo que servem de guia para ação dos movimentos sociais, formando microestruturas que representam os diagnósticos e prognósticos desenvolvidos durante suas atividades e propostas de luta, bem como na sua organização, formas de atuação e mobilização de recursos. Os resultados mostram que toda esta dinâmica está relacionada ao alinhamento do ativismo negro ao que se denomina de framing global, que é um processo de difusão transnacional formado durante os processos de adaptação local.

Palavras-chave: Framing, Relações raciais, Movimento negro, Ativismo transnacional.

 

Abstract: The aim of this article is to explore the appropriation that the Brazilian black movement makes of diasporic content. Throughout history the black diaspora has produced different interpretations of what it means to be black, of what racism is, and produced different ways to fight it. Among these visions is the Black Atlantic, which presents itself as a macrostructure capable of influencing the formation of several frames around the world. The frames are interpretative schemes, world views that serve as a guide for the action of social movements, forming microstructures that represent the diagnoses and prognoses developed during their activities and proposals for struggle, as well as in its organization, forms of action, and resource mobilization. The results show that all these dynamics are related to the alignment of black activism to what is called global framing, which is a process of transnational diffusion formed during local adaptation processes.

Keywords: Framing, Race relations, Black movement, Transnational activism.

 

 

INTRODUÇÃO

 

Para se compreender os movimentos sociais contemporâneos deve-se ter em mente os aspectos internos e externos que constituem a ação coletiva (ZALD e ASH, 1966). Nas palavras de Melucci (1989) isso significa que não devemos assumi-los como algo dado, tampouco somente aquilo que o movimento diz sobre si mesmo. Ou seja, deve-se estabelecer uma relação entre os aspectos macro e micro estruturais que influenciam a ação coletiva. Um ponto importante que perpassa a discussão sobre movimentos sociais é o contexto cultural que influencia na ação coletiva (WILLIAMS, 2006). No caso dos movimentos negros este contexto corresponde ao pensamento diaspórico representado por movimentos Pan-africanista e Négritude, reinterpretados pela tese do Atlântico Negro (GILROY, 2001), que os analisa como dimensão macro estrutural responsável pela articulação e difusão de conteúdos através das diversas regiões do mundo. O que na linguagem do multiculturalismo, significa os diversos lugares de exílio para os afrodescendentes (HALL, 1999).

O Atlântico Negro é uma metáfora criada pelo sociólogo inglês Paul Gilroy (2001) para representar a dinâmica transnacional que caracteriza a cultura negra. Trata-se de uma abordagem cosmopolita que visa ir além dos nacionalismos que tendem a aprisionar esta cultura ao “território nacional”, desconectando-a de suas raízes africanas. Deste modo, o uso do oceano atlântico se mostra como uma forma de deslocar a representação desta cultura do solo fixo (terra firme) para movimento das águas (mar) e, com isso, destacar o caráter fluido que as identidades planetárias podem assumir na atualidade. Neste espaço de representações é que circulam as múltiplas formas de interpretação da cultura negra (na música, na literatura, na religião, na política e nas formas de organização) que foram levadas pela diáspora negra aos diversos lugares de exílio que se conectam geograficamente ao oceano atlântico e culturalmente ao Atlântico Negro.

Parte destes conteúdos ganhou vida por meio do movimento dos direitos civis e de suas inovações organizacionais que, pela sua efetividade, se difundiram dentro e fora dos EUA (MORRIS, 1999). Sendo veiculados por mecanismos relacionais (interações e contatos entre a militância) e não-relacionais (documentos, manifestos e projetos compartilhados) que contribuíram para a formação de um framing global que começa a ser apropriado pelo movimento negro brasileiro logo após sua reorganização, com a fundação do MNU em 1978. Como observa Guimarães (2003), estes conteúdos diaspóricos são incorporados ao repertório do movimento negro, refletindo-se nas propostas de classificação racial e nas políticas públicas baseadas na raça. Considerando que estes conteúdos não possuem um significado imanente, pois se desenvolvem a partir da apropriação que é feita pelos militantes, então para compreende-los é preciso acessar sua dimensão micro estrutural, disposta pela interpretação que é feita destes conteúdos.

Assim, quando o movimento negro brasileiro interpreta estes conteúdos, ele produz uma versão própria sobre o que seja o racismo no Brasil e sobre qual é a melhor forma de combatê-lo. Esta versão particular de um conteúdo gerado em contexto mais amplo se materializa nos textos culturais que terão um sentido específico para os militantes e para os grupos que estão ao redor dele e que se interessam pelo que o movimento tem a dizer sobre a questão racial. O fio que conecta estes níveis de análise, que vai dos elementos que formam o texto cultural (Atlântico Negro e a sua difusão) até a prática social do movimento negro brasileiro (interpretação e agenciamento), é a intertextualidade. Ela nos ajuda a compreender como modelos de mundo se tornam modelos de organização na medida em que os textos produzidos pelo movimento negro carregam consigo elementos de outros textos produzidos e difundidos transnacionalmente.

Tendo em mente esta relação entre o texto e o seu contexto, meu objetivo neste artigo é explorar a dimensão textual a partir da apropriação que o movimento negro brasileiro fez dos conteúdos diaspóricos, produzindo seus próprios textos narrativos. De acordo com os níveis narrativos que formam o texto (PENTLAND, 1999), temos o Atlântico Negro como um mecanismo gerador de uma narrativa global, ou seja, macroestruturas que fornecem os elementos que influenciam as fábulas (versões) e histórias (relatos) que são contadas pelo e sobre o movimento negro, ou seja, as microestruturas que se materializam nos textos narrativos e representam os diagnósticos e prognósticos desenvolvidos pelo movimento negro durante suas atividades e propostas de luta, bem como na sua organização, formas de atuação e mobilização de recursos. Ambos se alinham ao que se denomina de framing global, que é um processo de difusão transnacional formado durante os processos de adaptação local (TARROW, 2006).

Para desenvolver estes pontos, a metodologia utilizada foi a análise de narrativas (RIESSMAN, 1993; NYGREN e BLOM, 2001). As narrativas são histórias não apenas sobre indivíduos, sobre o espaço social em que eles vivem ou sobre a sociedade na qual estão inseridos, são também histórias acerca da interseção destes três elementos (LASLETT, 1999). São estas interseções que fazem da análise de narrativas um método de pesquisa que nos ajuda a compreender as dimensões macro e micro discutidas anteriormente. As vidas narradas não podem ser tomadas como um “pedaço” do social, porque na verdade elas são o próprio social. Com efeito, as histórias sobre o movimento negro narradas neste artigo estão baseadas em 38 (trinta e oito) depoimentos concedidos entre 2003 e 2007 por militantes do movimento negro brasileiro para o programa de história oral conduzido pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV-RJ) e publicados no livro organizado por Alberti e Pereira (2007) e nos 67 (sessenta e sete) discursos proferidos por militantes, intelectuais e políticos registrados em notas taquigráficas do Congresso Nacional, do Senado Federal e do Superior Tribunal Federal sobre os debates em torno dos aspectos positivos e negativos da Políticas de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial realizados entre 2007 e 2010.

O artigo está organizado na forma de narrativa e, por isso, intercala histórias com teorias que se iniciam com uma breve digressão histórica sobre a trajetória do movimento negro brasileiro, destacando os deslocamentos feitos nos frames de ação coletiva do movimento. Em seguida narra como o processo de framing global influenciou na busca pela internalização destes conteúdos junto aos governos e aos demais atores da sociedade civil. Neste processo a militância brasileira desenvolveu uma estrutura de mobilização intra-institucional e partidária, o que possibilitou construir dentro das esferas de poder e decisão política um diagnóstico, prognóstico e ressonância alinhados com os conteúdos difundidos pelo transnacionalismo negro. Na última parte são narrados como estes processos influenciaram nas formas de organização do movimento negro brasileiro.

 

FRAGMENTOS DE HISTÓRIA ORGANIZACIONAL E FRAMES DE AÇÃO COLETIVA: DA RESISTÊNCIA COLONIAL AO MOVIMENTO NEGRO CONTEMPORÂNEO

 

Uma leitura crítica de toda e qualquer historiografia oficial revela que a trajetória de muitos grupos sociais minoritários tende a ser contada de forma equivocada e/ou mal-intencionada (CHAKRABARTY, 1992). Esse parece ser o caso da história das minorias negras e indígenas no Brasil. Versões sobre a preguiça do índio e da adaptabilidade e docilidade do negro ao trabalho escravo escondem de forma perversa a natureza das lutas por igualdade e justiça que caracterizou, por exemplo, a resistência negra ao longo dos séculos.

No século XVI quando houve a primeira fuga em massa de quarenta escravos no sul de Pernambuco, resultando na formação dos primeiros quilombos e revivendo a organização social dos antigos povos africanos, tem-se ali um marco na resistência negra organizada no Brasil. Desde então, aconteceriam uma série de outros movimentos de resistência, tais como, a Revolta dos Alfaiates em 1789; a Revolta dos Malês em 1835; a Balaiada em 1838, entre outros. Sendo que estas últimas revoltas contaram com a participação decisiva da comunidade negra engajada nas mudanças na estrutura de poder da sociedade brasileira (MUNANGA e GOMES, 2006).

Segundo Fernandes (1989), até a tardia assinatura da Lei Áurea, a resistência negra se engajava na luta pela abolição da escravidão no Brasil. No entanto, mesmo depois de 1888, devido às condições sociais deploráveis que se encontrava a comunidade negra, lançada à própria sorte e despreparada para competir com os imigrantes brancos, a luta pela abolição continuava sob o entendimento de que havia uma dívida histórica junto à comunidade negra. Assim, o fio condutor das lutas seguintes tem sido a cobrança dessa dívida motivando outros movimentos de resistência durante toda a república. Entre os quais se destacam: a Revolta da Chibata em 1910 (CARVALHO, 1995); a criação de Associações, Grêmios e Clubes para negros entre os anos 1910-20 (DOMINGUES, 2007); a Frente Negra Brasileira em 1931 (BARBOSA, 1998); a União dos Homens de Cor em 1943 (SILVA, 2003); o Teatro Experimental Negro em 1944 (NASCIMENTO, 2004) e o Movimento Negro Unificado em 1978 (COVIN, 2006), que completa agora 40 anos e representa a principal organização do movimento negro engajada na luta anti-racista.

Quando analisamos a trajetória do movimento negro ao longo do século XX (DOMINGUES, 2007), podemos observar um amadurecimento do movimento no sentido de definir melhor sua identidade e, principalmente, de assumir uma postura mais radical diante do racismo e do discurso da mestiçagem. Durante o período de 1978 a 2000, após a criação do MNU, tem-se uma série de rupturas com as fases anteriores do movimento negro, entre os quais: (1) um deslocamento na posição política do movimento, da direita para a esquerda marxista em 1970 e 1980, nos primeiros momentos do MNU; (2) maior permeabilidade do movimento em relação as influências internacionais, com destaque para o afrocentrismo e o movimento dos direitos civis norte-americanos; (3) o uso do termo “afro-descendente” como auto-identificação dos negros brasileiros, aos moldes do que é usado no contexto norte-americano; (4) a busca pelas causas da marginalização negra, agora como o resultado da escravidão e também do sistema capitalista; (5) a busca pela solução do racismo, agora pela via educacional e nos marcos de uma sociedade socialista; (6) denúncia sistemática do mito da democracia racial e uma postura radical contra a mestiçagem, encarando-a como uma estratégia de diluição da identidade negra; e (7) uma aproximação cada vez maior com os símbolos associados à cultura negra, com destaque para a mudança do dia 13 de maio pelo dia 20 de novembro como data de reflexão sobre a resistência negra no Brasil.

Nos anos seguintes, este conjunto de eventos gerou um novo perfil para o movimento negro, com novas configurações dos frames que orientam a ação do movimento. Na teoria de movimentos sociais os “frames” são definidos como a base de uma ação orientada para conjuntos de significados e crenças que inspiram e legitimam as campanhas e atividades de um movimento social. Em outras palavras, são esquemas interpretativos que definem certas condições como justa ou injusta, atribui a responsabilidade pela injustiça e aponta as alternativas que poderiam ser alcançados através da ação coletiva (SNOW e BENFORD, 1988). Em face das injustiças percebidas, os movimentos sociais iniciam um processo de articulação que visa construir alternativas de mobilização para enfrentar alguma situação ou condição problemática que necessita ser mudada para que deixe de ser injusta. Para tanto, segundo Benford e Snow (2000), os frames de ação coletiva se desenvolvem a partir de três funções: o diagnóstico, o prognóstico e a motivação.

O diagnóstico se caracteriza pela identificação da fonte, das condições ou dos culpados pela injustiça. Trata-se atribuir a responsabilidade a um determinado ponto que será o foco da ação coletiva. O prognóstico se caracteriza pela formulação de uma ou mais propostas para combater o problema diagnosticado, bem como táticas e estratégias de ação que serão utilizadas. Assim, há uma estreita relação entre o diagnóstico e o prognóstico na medida em que a identificação de determinados problemas específicos tende a restringir o leque de possíveis soluções e estratégias para resolver tal injustiça. Após a definido o prognóstico, chega o momento de partir para a ação, de promover a motivação do grupo. Trata-se do que Gamson (1995) denomina de “agenciamento”, um processo de conscientização em que os ativistas acreditam ser possível modificar uma determinada situação a partir do prognóstico definido. Contudo, o sucesso desse agenciamento, depende da capacidade que movimento possui de “alinhar” a esfera individual e coletiva em torno de um dado prognóstico. Ou seja, fazer com que o prognóstico cause impacto suficiente para motivar a participação dos indivíduos e do movimento social na ação.

Além disso, para que um diagnóstico e o seu respectivo prognóstico tenham legitimidade no contexto social em que estão sendo apresentados, os movimentos sociais devem ter ressonância. Isso significa que devem alcançar o debate público para que as propostas tenham sua aprovação social e passem a ocupar espaço na agenda das esferas de decisão que podem vir a influenciar e a apoiar a ação do movimento (BENFORD e SNOW, 2000).

Para que um frame tenha essa ressonância ele precisa cumprir alguns requisitos que são fundamentais para sua aceitação fora do movimento social. Segundo Snow e Benford (1992), estes requisitos definirão as características que o frame pode vir a assumir e, dependendo delas, isso poderá afetar na sua ressonância, sendo elas: (1) a coerência dos frames, pois eles devem ser logicamente complementares em seus diferentes aspectos: táticas, diagnóstico, prognóstico, conjunto de valores e crenças, etc., (2) a credibilidade empírica, pois eles devem fazer sentido de acordo como a visão de mundo daquela sociedade; (3) a credibilidade dos promotores do frame, pois dependendo de quem o divulga pode ser mais ou menos convincente junto aquela sociedade; (4) a comensurabilidade experiencial, pois o frame deve proporcionar a possibilidade de ser vivenciado na experiência cotidiana daquela sociedade; (5) a centralidade, pois devem ter valores e crenças essenciais para a vida das pessoas naquela sociedade; e (6) a fidelidade narrativa, pois os frames devem basear-se ou alinhar-se a cultura daquela sociedade, expressa a partir das suas narrativas, dos seus mitos e dos seus pressupostos básicos.

Nem sempre estas condições estão colocadas para os movimentos sociais, o que pode leva-los a desenvolver, elaborar e difundir seus frames junto a sociedade ao qual pretendem obter apoio. Neste sentido, os anos que sucederam a abertura política rumo à redemocratização foram determinantes para o movimento negro, pois abriram inúmeras possibilidades para que fossem apresentadas propostas efetivas de políticas de igualdade racial que convergissem com as demandas históricas do movimento. Assim, a solução do racismo pela via política (“negro no poder!”) ganha força na década de 1980 e 1990 com a aproximação entre movimento negro e partidos políticos (GUIMARÃES, 2001) e, sobretudo nos anos 1990, com a entrada do movimento negro no Estado, participando de suas esferas de decisão (SANTOS, 2006).

Neste sentido a Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, realizada em 20 de novembro de 1995, foi um marco importante para o movimento negro e sua inserção no Estado brasileiro, pois terminou com a criação de um órgão federal capaz de intervir diretamente na formulação de políticas públicas voltadas para a população negra (SANTOS, 2014). O desfecho da marcha se deu com o encontro entre o presidente Fernando Henrique Cardoso e a Comissão Executiva Nacional para a assinatura do decreto de 20 de novembro de 1995, que instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra (GTI), que seria o embrião da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), criada anos depois, em 2003, durante o primeiro mandato do governo Lula. Após este período de reposicionamento do movimento negro e, conforme veremos a seguir, do seu alinhamento com resultados efetivos da ação coletiva, houve a construção de um certo consenso a favor das ações afirmativas no âmbito do movimento negro contemporâneo. Ampla parcela dos militantes entendeu que se tratava de um instrumento valioso para romper com a exclusão dos negros no mercado de trabalho e também para combater o chamado racismo sistêmico, que tende a reproduzir a pobreza entre os negros e seus descendentes (SANTOS, 2001). Assim, tornou-se indispensável a defesa das cotas e da aprovação do estatuto da igualdade racial, que são ações afirmativas voltadas especificamente para a população negra, cujo significado se associa ao Atlântico Negro e aos princípios de racialização que estão por trás desta noção.

 

DO FRAMING GLOBAL AO ATIVISMO LOCAL E À POLÍTICA INSTITUCIONAL: A CONSTRUÇÃO DO SENTIDO NA AÇÃO COLETIVA DO MOVIMENTO NEGRO BRASILEIRO

 

As ações afirmativas – e a sua ponta de lança, a política de cotas – são o principal “remédio” proposto pelo movimento negro brasileiro para o problema das desigualdades raciais no Brasil. Segundo os proponentes, tal iniciativa consegue ao mesmo tempo equilibrar assimetrias econômicas e valorizar a identidade negra. Contudo, como é de se esperar, a prescrição deste remédio responde a um diagnóstico. E neste caso, temos um diagnóstico bastante claro de que os negros estão a margem dos espaços de poder no Brasil, não são representados em suas diversas instâncias e ainda encontram barreiras econômicas, sociais e raciais para ascensão social (IPEA, 2011).

Para formular tanto o diagnóstico como o prognóstico, o movimento negro precisa mobilizar um conjunto de referências e justificativas que sustentem estas posições e as faça tornarem-se palpáveis em nosso contexto. O que significa construir uma base de apoio dentro (motivação) e fora (ressonância) do movimento. As propostas devem ser coerentes com o frame compartilhado pelos ativistas dentro de um esquema interpretativo que dê sentido as injustiças percebidas.

 

Diagnóstico

 

Os movimentos sociais elaboram diagnósticos para identificar quais são os fatores responsáveis pela injustiça que pretendem combater por meio da ação coletiva. Encontrar estes fatores passa, primeiro, pela definição de Quem sofre estas injustiças e, depois, de Qual tipo de injustiça sofrida. Tomando o caso do movimento negro neste processo, temos a elaboração de um diagnóstico que visa identificar quem são os negros discriminados e qual o tipo de discriminação eles sofrem. Evidentemente, existem múltiplas possibilidades de se elaborar um diagnóstico que atenda a estas questões, porém, em se tratando do movimento negro brasileiro e das conexões que ele guarda com a dinâmica do Atlântico Negro, este diagnóstico assume uma feição bastante particular. A começar pela própria definição de quem é negro no Brasil.

 

Eu trabalho com a noção do ser negro a partir de três referenciais possíveis. Primeiro, considero negros todos os descendentes de africanos. Todos os descendentes de africanos são negros. Um segundo referencial é: quem se considera como tal. Você tem que ser descendente de africano, e segundo, você tem que se considerar negro. E um terceiro referencial é: quem é tratado como tal. Ou seja, quem sofre discriminação. (EDNA ROLAND, 2007, p.411)

 

De acordo com o relato acima, a primeira referência para se definir quem é negro é a ancestralidade. Ou seja, o sistema de classificação norte-americano conhecido por one drop rule ou princípio da hipodescendência. Neste sistema, todo sujeito nascido de relações interétnicas envolvendo negros, também será considerado negro (HOLLINGER, 2003). A segunda referência exige que o sujeito se reconheça como negro dentro deste sistema. O que muitas vezes pode ser um processo difícil de enfrentar quando ainda se está sob a influência de frames raciais anteriores a este. Em alguns casos, conforme mostra o relato a seguir, será a partir da terceira referência – de ser tratado como negro – que o sujeito irá se reconhecer como tal.

 

[...] de repente, ele disse: “Você tem aí a foto de sua mãe?” Eu disse: “Tenho sim.” Enfiei a mão na carteira, peguei a foto da mãe e mostrei para ele. Ele olhou: “Sua mãe é branca?” Eu disse: “Lógico. Eu sou branco, minha mãe tem que ser branca.” Ele cortou o assunto e, assim que percebeu que eu estava totalmente descontraído, fez a seguinte pergunta: “Tem uma foto do seu pai?” Eu disse: “Não tenho, não.” Ele disse: “Não tem?” Eu disse: “É, frei, ter, eu tenho, mas está lá na mala.” “Vai lá buscar.” Eu disse: “Mas a mala já está fechada e eu estou pronto para ir embora...” “Você vai embora, e eu quero conhecer pelo menos o seu pai de foto.” Eu abro a mala, pego lá no fundo a foto do pai, trago e mostro para ele, todo humilhado. Ele diz: “Seu pai é negro.” Aí deu um choque geral. Parado, nem saí do lugar, nem para frente, nem para trás, nem baixava. Ele pegou um copo d’água e disse: “O que está acontecendo?” Eu não conseguia falar e ele disse: “Olha, você sofre de uma doença grave de que você não é culpado. Você sofre de uma doença perigosíssima, contagiante. Ela chama-se ‘ideologia do embranquecimento’.” (FREI DAVID, 2007, p.50)

 

O episódio narrado ocorreu durante a juventude do militante, quando ele ainda cursava o seminário. Até aquela ocasião, ele se identificava com a mãe e se via como um branco. Isto é, como assinala seu interlocutor na estória, ele reproduz a lógica do branqueamento, uma ideologia que inverte a lógica da hipodescendência. Segundo Hofbauer (2006), biologicamente o branqueamento visava “clarear” a população brasileira. Assim, todo cruzamento envolvendo brancos, tornava seus descendentes “brancos”. Culturalmente, o branqueamento visava assimilar negros e mestiços, incutindo-lhes crenças e valores da cultura branca europeia. Trata-se, portanto, de um princípio de hiperdescendência que, mesmo após o elogio à mestiçagem feito por Gilberto Freyre, ainda vigorou por muito tempo, permeando o imaginário social dos que buscavam se integrar a sociedade.

O constrangimento do Frei David ao mostrar a foto seu pai negro nos mostra também que sua condição de mestiço, filho de uma união inter-racial, coloca-o de forma ambígua entre dois frames com lógicas contrárias que, ao se imporem, eliminam a possibilidade de formar uma posição intermediária, uma identidade mestiça. É neste campo de ambiguidades e possibilidades que os sistemas de classificação racial operam, empurrando o mestiço para um dos polos. Na classificação proposta pelo movimento negro brasileiro, o mestiço é empurrado para a hipodescendência e “escurece” nas estatísticas, já naturalizadas na forma de discurso oficial. Como mostra a fala do então Ministro da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR):

 

Quero, em primeiro lugar, dizer que, do ponto de vista, inclusive, da auto declaração, hoje a pesquisa nacional por amostragem de domicílio aponta a população brasileira se declarando negra, ou seja, preta ou parda, 50,06% da população de nosso país, o que mostra que se está discutindo, tratando-se aqui de um tema que vai ao encontro da maioria da população brasileira. (MINISTRO EDSON DE SOUZA, 2010)

 

Assim, a primeira questão do diagnóstico sobre quem são os negros discriminados, fica respondida com o uso da equação: pretos + pardos = negros. Resta saber agora qual o tipo de discriminação estes negros sofrem. Neste sentido, os indicadores sociais com recorte racial são vistos pelo movimento negro como um instrumento valioso para um diagnóstico adequado.

 

A negação da informação tem sido um dos instrumentos mais virulentos existentes no Brasil, produto do racismo e da discriminação. Um problema sobre o qual você não tem informação não existe. Você não pode combater o que não existe. Se não está documentada, a desigualdade não existe. Então nós já vimos há décadas lutando para que todos os sistemas de informações públicas no Brasil acerca da população tenham essa informação. Seja no trabalho, na educação, na saúde, habitação, acesso ao crédito, ao capital... Tudo isso precisa ter informação. Antes, o único lugar em que se registrava a cor era na polícia. O Estado brasileiro só estava interessado em comprovar que os negros são marginais e que cometem crimes. Então nós precisamos ter informação do outro lado da moeda. Quais são as condições sociais existentes, que conduzem a população negra a uma situação de marginalidade? (EDNA ROLAND, 2007, p.282)

 

De acordo com o relato acima, somente com a racializaçao dos sistemas de informação seria possível ter uma dimensão precisa do problema no negro no Brasil. Com estas informações o movimento negro consegue fazer comparações com a situação do negro em outros países. O que ajuda a ilustrar ainda mais as assimetrias, não apenas entre brancos e negros no país, mas também entre os negros em diferentes países. Comparações mais comuns são feitas entre países como Brasil, EUA e África do Sul, tendo em vista as variadas formas de racismo vividas por estas localidades e suas diferentes estratégias para combatê-lo (GUIMARÃES, 1999; SILVA, 2006; SOUZA, 1997). A educação costuma ser um tema muito utilizado nas comparações, pois tem sido considerada pelo movimento negro como a melhor alternativa para redução das desigualdades entre negros e brancos. Em termos comparativos pode-se dizer que

 

Diferentemente os negros norte-americanos, por exemplo, também vítimas da escravidão, tiveram a sua mula e o seu acre de terra; tiveram a subvenção do Estado e puderam criar, por exemplo, suas escolas, suas igrejas e suas universidades. Quando éramos escravos aqui a Cheyney University na Pensilvânia, nos Estados Unidos da América, fundada em 1837, já recebia a sua primeira turma de jovens negros. E mesmo hoje nos Estados Unidos cento e dezessete universidades, historicamente negras, completam esse serviço de incluir e permitir o acesso ao conhecimento aos negros nos Estados Unidos. (JOSÉ VICENTE, 2010)

 

Além das diferenças no acesso a educação superior que os negros americanos tiveram, é importante notar que o relato cita também que eles puderam criar suas escolas e suas igrejas. Iniciativas alinhadas a proposta de W.E.B DuBois de criar organizações negras como estratégia para conservação das raças (DUBOIS, 1897). Não por acaso, José Vicente é o reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, a única escola de nível superior da América Latina voltada para a inclusão de estudantes negros. Sua proposta é inspirada nas chamadas black colleges norte-americanas, fundadas a partir do século XIX para atender estudantes negros impedidos de estudar nas universidades brancas por força da segregação racial (ALLEN e JEWELL, 2002).

Embora nunca tenha havido barreiras legais para a entrada dos negros brasileiros na universidade, soluções como esta surgem no cenário brasileiro a partir de uma comparação com os EUA e da inclusão dos negros por meio destas instituições negras. Note que se trata de uma solução que atende a um problema específico dos EUA. Porém isso não impede que seja apropriada pelo movimento negro brasileiro para resolver uma questão similar, que é a exclusão dos negros no ensino superior brasileiro. Não por força de uma segregação formal, mas por mecanismos sociais e econômicos que historicamente colocaram o negro brasileiro à margem deste nível educacional.

 

Prognóstico

 

O prognóstico consiste em uma ou mais soluções que são propostas pelos movimentos sociais para sanar as injustiças identificadas na etapa de diagnóstico. Para o movimento negro brasileiro, tais propostas giram em torno do seu principal “remédio” contra os males da exclusão racial: as ações afirmativas. Conforme discutido antes, este é um dos poucos consensos celebrados pelo movimento negro e tem sido a sua principal bandeira de luta.

 

A questão racial naturaliza a desigualdade; a questão racial naturaliza o fato de que pessoas, por terem determinada cor na pele, é natural que não tenham abrigo, é natural que peçam esmolas, é naturalizado isso na sociedade, e isso deve ser mudado. E a única forma que nós pensamos que pode se mudar é a partir de políticas complementares às políticas universais. As políticas complementares são políticas de nova geração, políticas que nós chamamos de ação afirmativa. (MÁRIO LISBOA THEODORO, 2010)

 

Há pelo menos duas portas de entrada para as ações afirmativas na agenda do movimento negro. A primeira através do legislativo, com uma proposta de lei apresentada pelo deputado Abdias do Nascimento, após retornar do exílio nos EUA. Nas palavras do próprio Abdias,

 

[...] creio que uma das mais importantes medidas do meu mandato foi a de abrir, no Congresso Nacional, o precedente de uma proposta que hoje ganha cada vez mais destaque: a instituição de políticas públicas específicas para a população de origem africana, através da chamada Ação Afirmativa, ou Ação Compensatória na linguagem do meu Projeto de Lei nº 1.332, de 1983. (NASCIMENTO e NASCIMENTO, 2000, p.222)

 

A segunda porta de entrada se abre a partir de uma parceria com empresas multinacionais de origem norte-americana que, por exigência de suas matrizes, já utilizavam ações afirmativas com seus funcionários (ALVES e GALEÃO-SILVA, 2004, MYERS, 2003). O contato do movimento negro com estas experiências ocorre

 

Em 1991, quando assumi a Coordenadoria do Negro na prefeitura de São Paulo, chegou para mim uma notícia de que tinha uma empresa em São Paulo que aplicava ação afirmativa: Levi Strauss. Aí marquei um dia, liguei para lá e falei: “Quero conhecer o diretor da empresa.” Peguei um carro e fui lá para a cidade de Cotia, para a Levi Strauss. Ali foram mapeando para mim como a coisa acontecia na empresa e comecei a me dar conta de algumas coisas. Primeiro, que era possível. Segundo, que havia alguns nós muito concretos. Quais eram? Que você não fazia ação afirmativa só com conversa. Precisava ter dinheiro. Os caras tinham gastado quase um milhão de reais para poder mudar, porque implicava em muito treinamento, muita capacitação, eventos, apoio a projetos da comunidade, de ONGs antirracistas... (IVAIR ALVES DOS SANTOS, 2007, p.354)

 

Depois deste encontro, a proposta de ação afirmativa se tornava palpável a partir de uma experiência concreta. Baseado nisso

 

Não tive dúvida: quando assumimos aqui em Brasília, a primeira coisa que fiz foi reunir as empresas, para elas poderem relatar suas experiências. Fizemos uma reunião no Sesc em São Paulo chamando Levi Strauss, Johnson & Johnson, Motorola, essas grandes empresas. Todas que eu sabia que tinham ação afirmativa, chamei para uma reunião e um seminário. Foi muito bom. E lá eu fiz um documento juntamente com a OIT, um documento muito importante. Qual é a coisa mais importante desse processo? Estava ali vendo aquelas empresas confirmando aquilo que eu tinha visto três anos atrás, em 1991. Era possível, entendeu? Então comecei a trabalhar um pouco esse tema dentro do governo, com essa diretriz.   (IVAIR ALVES DOS SANTOS, 2007, p.355)

 

Junto com as cotas, o ensino de História da África complementa o prognóstico do movimento negro para promover a igualdade racial. Introduzido no currículo escolar da educação básica pela Lei nº. 10.639 de 2003, a proposta visava romper com a historiografia oficial – que coloca o negro à margem dos grandes acontecimentos nacionais – e reconhecer a contribuição dos africanos e seus descendentes para construção do país. Além de ser considerada uma demanda antiga do movimento negro, a proposta se alinha ao Afrocentrismo na medida em que busca deslocar as narrativas históricas da Europa para a África (HOSKINS, 1992). Isso implica em desconstruir as versões europeias sobre abolição dos escravos e da sua participação neste processo.

 

Porque é aquele negócio que a gente sempre diz: tirar Zumbi lá dos porões da história já foi uma tremenda vitória. Mas ainda falta muita coisa, ainda falta falar desse que eu chamo “sequestro” dos negros de África para o Brasil. E também falta falar muito mais de como foi que aconteceu a libertação. A princesa Isabel ainda é a referência. Nós construímos Zumbi, mas a princesa Isabel ainda existe nos livros escolares, ainda existe essa ideia de que o negro não brigou pela sua libertação. (JUREMA BATISTA, 2007, p.438)

 

Assim como a proposta de cotas, o ensino da História da África já está em funcionamento há algum tempo no país e por isso ocupa lugar de destaque nos debates sobre inclusão racial. Outras propostas nas áreas de educação, cultura, saúde, religião, mercado de trabalho, meios de comunicação, acesso à moradia, acesso a justiça, esporte e lazer estão no texto do Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288, de 20 de Julho de 2010), que consolida o conjunto de proposta que forma o prognóstico do movimento negro brasileiro.

 

Motivação e Ressonância

 

Definido o diagnóstico e o prognóstico, os movimentos sociais precisam convencer seus militantes e motivá-los a lutar pela causa do movimento. Quando o movimento negro brasileiro redefine sua plataforma de lutas após a sua refundação, em 1978, redefiniu-se também os frames de ação coletiva que sustentam os diagnóstico e prognóstico apresentados. O que acabou gerando disputas internas entre as organizações negras que não se alinhavam plenamente com este novo perfil. Além disso, havia de se considerar como este novo perfil de propostas seria recebido fora do movimento. Ou seja, qual seria a ressonância daquele novo movimento negro.

Estes dois processos têm seu marco a partir da fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), cuja pretensão era alinhar as diversas organizações em uma plataforma comum. Formando uma ampla frente de luta pela igualdade racial que fosse mais efetiva que as suas versões anteriores.

 

O MNU traz um nível de politização maior para o debate racial e situa o movimento negro em uma perspectiva mais de esquerda, que eu acho que foi a influência fundamental de toda a militância da minha geração. Acho que o fato político mais importante do movimento negro contemporâneo foi aquele 7 de julho de 1978, porque tudo o que ocorre depois se referencia a esse ato inaugural de refundação, digamos, do movimento negro contemporâneo. Muitas das organizações que existem hoje são releituras das teses que existiam, porque a visão estratégica que foi colocada naquele momento orienta até hoje. Não foi criada uma outra grande tese tão abrangente quanto a que o MNU traz e provavelmente é possível dizer que ela teve e tem uma influência política maior do que a do próprio MNU enquanto instituição. No tempo, as teses acabaram sobrevivendo mais do que a própria instituição tal como foi concebida originalmente. (SUELI CARNEIRO, 2007, pp.148-149)

 

A “grande tese”, citada por Sueli Carneiro, caracteriza-se pelo alinhamento do MNU com os conteúdos difundidos pelo Atlântico Negro. Segundo Covin (2006), a visão estratégica colocada pelo MNU se orienta pelos princípios do pan-africanismo e pelo afrocentrismo. Entre os quais a preservação das raças por meio do pensamento racialista. O próprio MNU, durante o III Congresso Nacional realizado em abril de 1982, ao criticar o mito da democracia racial e seus efeitos, declara: “Muitos de nós acreditam que a ‘miscigenação’ tem sido um meio de impedir a discriminação racial e o preconceito – pois os casamentos entre brancos e negros geram ‘mulatos’ e ‘morenos’ – esvaziando os dois polos extremos: negros e brancos” e, a partir disso, conclui que “[...] para nós do Movimento Negro Unificado, os negros, e seus descendentes constitui em uma só raça e um único povo” (MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO, 1988, p.20 e 24).

Contudo, ao adotar esta “grande tese”, o MNU se afasta da luta de classes e coloca a raça como elemento de articulação autônomo. Ainda que orientado por um olhar de esquerda, como era comum aos movimentos sociais nos anos 1970 e 1980, o MNU não podia ser considerado como um movimento de esquerda clássico. Com efeito, este “racialismo de esquerda” (RISÉRIO, 2007) aliado ao perfil universitário da militância, dificultava a aceitação de suas propostas por uma fatia significativa da militância, ainda motivada por outras teses.

 

Eu não me sentia motivada pelo MNU. Achava o pessoal sectário, dentro da minha visão marxista, que nunca abandonei – é interessante, porque eu lido com a questão racial sem ter abandonado também o paradigma de classe, nunca joguei o velho Marx e companhia no lixo. [...] Uma outra razão também pela qual não quis entrar no MNU é porque eu sonhava com uma entidade que fosse realmente de base, que alfabetizasse os negros analfabetos, porque eu tinha vindo de uma família extremamente pobre e, além disso, tinha o compromisso social colocado pela igreja, pelo Partidão. Então, não era fazer a pregação racial, digamos, para um público escolarizado. Porque eu sabia inclusive que era um público extremamente limitado. (DIVA MOREIRA, 2007, p.271-272)

 

Se de um lado, o vínculo com a base, com as massas negras, continua sendo um ponto de interrogação na tese defendida pelo MNU e pelas organizações negras que vieram depois dele, por outro lado, o compromisso com a transformação via revolução – típico da tese marxista – foi redefinido nos termos daquela “grande tese” do MNU. Ou seja, gradualmente construiu-se um consenso entre os militantes de que as ações afirmativas também seriam uma forma de revolução. O que possibilitou uma aderência mais ampla, conforme narra o relato a seguir.

 

Foi uma maturação muito lenta e também muito dolorosa. Porque em vários momentos estava em questão se a adesão a um tipo de reivindicação como essa significaria ou não uma rendição ideológica: nós, que amávamos tanto a revolução, agora estaríamos, digamos assim, contentes com a possibilidade de partilhar o bolo sem transformação social. Até que alguém disse que nós estávamos fazendo uma extraordinária transformação social das relações do cotidiano, das relações dos microespaços de poder. E a própria questão do empoderamento da população negra e a coisa mais altiva, mais ousada na política, nas relações intersubjetivas. Alguém precisou dizer que a gente estava fazendo a revolução, que cotas no Brasil é revolução. E a história está mostrando que é revolução. Possivelmente na República não houve um tema que tenha mobilizado tanta energia quanto a questão das cotas, a favor e contra. Então a gente começou a pensar que era legal, que era uma revolução. (HÉDIO SILVA JÚNIOR, 2007, p.397)

 

Além de reconhecer que houve um agenciamento mais amplo da militância, a narrativa acima nos mostra também que a proposta de implementar políticas de ação afirmativa teve ressonância fora do movimento negro. No entanto, foi a partir de Durban que o debate se consolida na agenda dos grandes temas nacionais. Com destaque da imprensa para a proposta das cotas.

 

Quando o governo brasileiro tornou público o relatório [de Durban] para a mídia, tudo o que a mídia queria falar era sobre cotas para negros na universidade. E aí, antes de ir para Durban, quando já foi anunciado que o meu nome ia ser identificado, o pessoal da imprensa vinha falar comigo e só queria falar sobre cotas. Aí eu falei: “Nós somos 45% da população brasileira; enquanto não formos 45% de todos os espaços que tem nessa sociedade, estão nos devendo.” Então coloquei o patamar, o referencial, os 45%. Na sequência, vejo a lei que o deputado aqui do Rio de Janeiro apresentou; inicialmente a proposta dele era 40% para negros. Então, o patamar de que se partiu nas políticas públicas aqui no Brasil foram os 40%. São momentos em que você tem a oportunidade de contribuir para que uma determinada política seja formulada ou implementada, e isso é que eu acho que faz o jogo interessante, essa possibilidade. (EDNA ROLAND, 2007, p.391)

 

O patamar sugerido por Edna Roland refere-se ao diagnóstico sobre os negros no Brasil que, por sua vez, refere-se ao princípio da hipodescendência que norteia o modelo de classificação racial proposto pelo movimento negro brasileiro e utilizado atualmente pelas estatísticas oficiais. O interesse da mídia pela participação do Brasil em Durban, como ressalta Roland, abre espaço para que as articulações internas do movimento alcancem o grande público e que percentuais como este, de 45%, sejam introduzidos no debate. Ao colocarem a questão racial neste patamar e reivindicar direitos a partir dele, o movimento negro passa a exigir praticamente metade do “bolo de oportunidades”, o que invariavelmente altera a lógica de competição historicamente dominada pelos brancos. Isso faz com que os brancos entrem no debate para contestar o prognóstico apresentado.

 

Acho que o debate sobre ação afirmativa tem coisas interessantes: ele tira a branquitude do armário. Hoje há uma reação branca à ação afirmativa no Brasil. A branquitude – como um movimento político absolutamente articulado, organizado, que gere a economia, a política e as comunicações desse país com tranquilidade – vai botando as manguinhas de fora, digamos assim. Isso aparentemente tensiona mais as relações, porque até hoje quem foi para o microfone, quem foi para o debate público, foi a negritude – se eu for pensar a negritude como a antítese da branquitude. Agora, não; agora, o branco foi chamado para o debate público para ele dizer o que ele pensa das relações raciais. Está sendo forçado, na verdade, porque o debate sobre ação afirmativa força o branco a se manifestar. (HÉDIO SILVA JÚNIOR, 2007, p.470)

 

Com efeito, o movimento negro consegue realizar o que ele sempre desejou desde a época da Frente Negra Brasileira, nos anos 1930, que era promover um debate nacional sobre as desigualdades raciais no Brasil.

 

Agora, é claro que a cota também provocou um debate, que é: o que é ser negro no Brasil? É meio intuitivo isso que estou falando, mas a visão sobre o racismo no Brasil está mudando. Eu acho que a geração que vem aí já vem com uma outra concepção, diferente dessa geração de que eu fiz parte, que foi mais um momento de afirmação da luta negra. A gente entra agora numa outra etapa, que é: o que a gente entende por ser negro no Brasil? O que a gente entende por racismo no Brasil e no mundo? Porque Durban também influenciou muito essa nossa geração. (FLÁVIO JORGE RODRIGUES DA SILVA, 2007, p.409)

 

Quando os brancos entram na discussão questionando as propostas do movimento negro, especialmente as políticas de caráter redistributivo que são a base das políticas de ação afirmativa nas áreas de educação e saúde (LIMA, 2010), abre-se uma importante oportunidade para que os detalhes do diagnóstico e prognóstico sejam discutidos, ampliando sua compreensão junto aos diversos setores da sociedade. O risco desta ressonância é que ao mesmo tempo em que se discute os detalhes, discute-se também os defeitos da proposta, minando as pretensões do movimento em face dos argumentos contrários a proposta. De qualquer forma, o movimento negro ganha visibilidade neste processo e o tema das relações raciais passa a compor a agenda nacional.

 

FRAMING GLOBAL E ORGANIZAÇÃO: POSSIBILIDADES DO TRANSNACIONALISMO NEGRO

 

Os sentidos da ação coletiva descritos anteriormente e seus desdobramentos na elaboração do diagnóstico, prognóstico e motivação/ressonância, refletem a dinâmica do framing global formado a partir das conexões do movimento negro brasileiro com o ativismo transnacional. Considerando que este frame contribui no alinhamento das experiências individuais e coletivas dentro de um esquema de interpretação que serve como um guia para ação, suas consequências podem ser sentidas na própria organização do movimento negro, isto é, na sua estrutura organizacional, nas suas estratégias de ação e na sua mobilização de recursos.

 

Estrutura

 

Ao longo da sua história, o movimento negro brasileiro ficou marcado pela sua pluralidade interna. As organizações que o compõe até conseguiram convergir em torno de certas propostas (por exemplo, as políticas de ação afirmativa), mas dentro desta convergência cada uma seguiu sua própria estrutura de organização em resposta ao contexto de lutas que estava vivendo. Com efeito, podemos dizer que existem diferentes correntes dentro do movimento que ao longo do tempo optaram por diferentes formas de luta, conforme mostra o relato a seguir

 

Numa tentativa de periodização do movimento negro, costumo dizer que, em 1971, começa o que nós chamaríamos de período contemporâneo das lutas negras no Brasil. [...] E depois, mais adiante, em 1978, surgem o MNU, o Feconezu, em São Paulo, e há outros fatos além dos aludidos. Agora, aí tem três divisões: de 1971 a 1978, que eu chamo “a virada histórica”; de 1978 a 1988, que é uma fase de organização do movimento, em que surgem novas entidades, tem os protestos, as denúncias... Nessa fase surge uma divisão também entre a corrente partidária, a corrente confessional cristã e o movimento propriamente dito, que segue aquele fluxo histórico e não depende nem de partidos nem de confissão religiosa cristã e se identifica, em termos religiosos, com a religiosidade de matriz negro-africana. Ao mesmo tempo, há o trabalho, por exemplo, na Constituinte, que vai resultar na inclusão do negro no texto constitucional, que é uma obra do movimento, que sensibilizou os partidos ou se valeu do oportunismo dos partidos. (OLIVEIRA SILVEIRA, 2007, p.270)

 

As divisões apresentadas por Silveira até ajudam a diferenciar os segmentos que formam o movimento negro, mas na prática as fronteiras são pouco definidas, chegando a ocorrer sobreposições que geram disputas entre as correntes e dentro das próprias organizações. Na corrente que ele denomina de “movimento propriamente dito”, temos diversas organizações negras que seguem “aquele fluxo histórico”. Entre as quais está o MNU, o autor da “grande tese”, que na sua fundação enfrenta disputas internas pela definição do perfil que irá assumir.

 

Fizemos um estatuto revolucionário. Pegamos o livro do Samora Machel, A luta continua, que tem o estatuto da Frelimo, e, com base no estatuto da Frelimo, fizemos um documento de 20 pontos, revolucionário. Mas o Hamilton achou que aquilo era burguês, muito careta, a Vera Mara o apoiou e foram contra. Como trotskistas, eles tinham o direito das minorias. Então fizeram outro. Aquilo chegou lá como recomendação da comissão organizadora, mas eles já chegaram apresentando outro. (AMAURI MENDES PEREIRA, 2007, p.159)

 

Tinha uma diferença fundamental entre os dois estatutos. Por quê? O nosso estatuto dizia: o MNU tem que ser mobilizador. No estatuto deles, dizia que o MNU tinha que ser reivindicativo. E essa discussão, embora pareça uma coisa simples, é uma questão teórica, de princípios. Se ele é reivindicativo, não propõe coisa alguma, fica apenas no âmbito de fazer reivindicações. E nós dizíamos que ele teria que ser mobilizador, na medida em que vimos que ele teria que trabalhar com a massa da população negra. Não simplesmente reivindicar os direitos de uma elite negra – que era o que a gente colocava, na época –, e sim mobilizar a massa da população negra para reivindicar, porque ela está no subemprego, está favelizada... Mas eles não tiveram essa compreensão, não quiseram, não concordaram, passaram por cima. E essa discussão foi que realmente deu o racha. (YEDO FERREIRA, 2007, p.160)

 

Na disputa pela definição do MNU em seu estatuto, o relato mostra que acabou prevalecendo um perfil não-revolucionário e vanguardista, distante da “massa da população negra”. De um lado, ilustra a origem do problema enfrentado, de não conseguir ser uma organização de base. De outro, permite romper com a estrutura horizontal das organizações anteriores ao MNU.

 

A estrutura das organizações era uma estrutura, em geral, colegiada, porque muitas vezes as pessoas tinham dificuldades de delegar poderes. Durante muito tempo as organizações negras se recusaram a ter uma estrutura verticalizada. Alguém pode dizer que isso é uma herança da ação política católica, porque as organizações católicas, em geral, têm a figura do colegiado. Mas há também quem diga que era uma dificuldade de delegação do poder. Esse trabalho interno foi um trabalho de nos depurar da herança do racismo, que vai se manifestar e se manifestou durante muito tempo. Se manifestou nas próprias organizações negras, sem dúvida nenhuma. A ideia básica era a de que todos deveriam estar no mesmo nível, ou de que ninguém poderia se destacar do grupo. Isso seria absolutamente normal se as pessoas não convivessem com outras organizações brancas, nas quais a estrutura era absolutamente verticalizada. (HÉDIO SILVA JÚNIOR, 2007, p.445)

 

A verticalização do MNU fez com que ele se diferenciasse principalmente da corrente confessional cristã, mas trouxe problemas de adaptação para as representações locais do movimento, que tiveram dificuldade de seguir a rotina burocrática exigida pelo movimento. O relato a seguir ilustra as consequências desta estrutura organizacional.

 

Começamos a criar os grupos do MNU aqui e a incentivar todos aqueles princípios e aquelas normativas, que, por fim, se tornaram excessivas e estrangularam o MNU no Rio Grande do Sul: aquelas exigências de estatuto, de ata, de relatório, com uma frequência impossível de ser cumprida. Nisso foi um ano, dois, três, quatro. No início foi uma maravilha. (HELENA MACHADO, 2007, p.167)

 

A corrente partidária, embora vista como separada das outras, se forma a partir dos militantes ligados ao movimento negro “que segue aquele fluxo histórico”. Portanto, há sobreposições entre as correntes partidária e histórica na medida em que os militantes transitam entre uma corrente e outra.

 

Eu disse: “Estou fazendo movimento negro.” Ela falou: “Por que você não vem para o PT?” Eu falei: “Partido, não.” “Edson, por que partido não? É um partido aberto, dos movimentos sociais. Você pode entrar para transar isso.” Então, através desse convite da Arlete, e entrando nessa conversa de que era aberto, movimento social, eu entrei no PT para criar a Comissão do Negro do PT no Distrito Federal. Como não conhecia ninguém, saí procurando as pessoas: “Você conhece algum militante negro?” “Conheço fulano.” Aí montamos a Comissão do Negro do PT em agosto de 1984. (EDSON CARDOSO, 2007, p.228)

 

Esta capilarização do movimento negro dentro de outras instituições permitiu que os militantes pudessem acessar importantes espaços de articulação política. Além disso, a relação com os partidos políticos criou outra importante oportunidade para os movimentos negros, que foram as nomeações para cargos públicos, o que permite uma articulação junto ao Poder Executivo.

 

Encontrei o Ivair, e ele e o Hélio Santos estavam criando o Conselho da Comunidade Negra em São Paulo e queriam um sindicalista para tocar um trabalho com as centrais sindicais. E me chamaram lá; eu tinha um trabalho no sindicato, dava aulas para peãozada, tinha um bom trânsito na CUT do estado todo, enfim, tinha experiência mesmo da militância sindical além da militância do movimento negro. Então me propuseram que eu assumisse esse papel no Conselho. Fui para São Paulo. (HÉDIO SILVA JUNIOR, 2007, p.221)

 

O acesso ao Estado permite que o movimento negro conheça sua estrutura de funcionamento, com suas rotinas, processos decisórios e fontes de recursos que são importantes para atender parte das suas demandas.

 

Na Sedepron, no Rio, durante o governo Brizola, nós não conseguimos avançar muito, nós apanhamos da máquina do Estado. Coisas técnicas que te derrubam: você pensa que tem grandes ideias, mas essas ideias precisam ser traduzidas na linguagem burocrática; você precisa fazer um projeto, tem que distribuir o orçamento do projeto por entre as rubricas e assim por diante. [...] E algumas pessoas têm feito esse trabalho. O Ivair é um cara que tem estado sempre nessa junção entre Estado e sociedade civil, que eu acho válida e necessária. Você precisa ter essas instâncias de contato, que, de alguma forma, vão levar a reivindicação do movimento social. Elas não podem substituir o movimento social – isso é uma tentação na qual às vezes se pode incorrer –, mas elas têm um papel a cumprir. (CARLOS ALBERTO MEDEIROS, 2007, pp.351-352)

 

A visão comum de que os movimentos sociais se comportam como desafiadores, ou seja, como organizações que devem estar contra o Estado, preservando sua condição de “outsider” ou extra-institucional, tem sido revista na prática dos movimentos sociais contemporâneos. Os estudos mostram que há uma permeabilidade cada vez maior entre a política institucionalizada e a não-institucionalizada, de modo que “[...] as instituições do Estado e os partidos são interpenetrados por movimentos sociais, muitas vezes desenvolvendo fora dos movimentos, em resposta aos movimentos, ou em estreita associação com os movimentos” (GOLDSTONE, 2003, p.2). E no caso do movimento negro brasileiro,

 

[...] havia uma tensão muito grande, pelo seguinte: qualquer participação no Estado era cooptação, você estava sendo cooptado e tal. Eu tinha clareza de que era mais uma arena política em que a gente estava trabalhando. Mas isso nos impediu, por exemplo, de ter uma aproximação maior com o movimento, que ficou muito desconfiado com o que ia ser aquilo ali. (IVAIR ALVES DOS SANTOS, 2007, p.217)

 

Apesar da desconfiança do movimento negro em relação as ramificações dentro do Estado, quando observamos a atuação destes militantes nas últimas décadas, dentro dos partidos políticos e do Estado, me parece que, para compreendermos a dinâmica do movimento negro contemporâneo, devemos deslocar nosso olhar mais atentamente para esta tendência de encarar o Estado como “mais uma arena política”, do que para aquela visão comum dos movimentos sociais como organizações necessariamente extra-institucionais.

 

Estratégia

 

As estratégias de ação do movimento negro brasileiro podem ser pensadas em duas fases de acordo com as mudanças estruturais apontadas anteriormente. Há uma primeira fase de maior informalidade, autonomia e extra-institucionalidade, que é marcada por protestos de rua, pela rebeldia e pela militância corpo-a-corpo. Depois, com a entrada do movimento nos partidos políticos e no Estado, estas estratégias assumem outra forma e passam a ser mais focadas no resultado, com alianças interorganizacionais e aproveitamento maior das oportunidades políticas que surgem nestes novos espaços. O jogo ficou mais complexo e sofisticado, o que exigiu competências burocráticas que poucos militantes possuíam.

Esta segunda fase é denominada por Risério (2007) como sendo a do “racialismo de resultados”, em que o movimento negro começa a adotar uma postura mais instrumental diante dos objetivos e não se furta de fazer alianças desde que elas possibilitem maior efetividade. Esta perspectiva estratégica contrasta bastante com as primeiras ações realizadas pela militância.

 

A Sinba fazia assim: a gente ia para a rua e agitava, ia para os calçadões do subúrbio para vender o jornal Sinba. A gente levara uns megafones de latão, com uma boca enorme. Chagas Freitas, tentando urbanizar um pouco, fez os grandes espaços de comércio se tornarem calçadões, onde não podia passar trânsito. Aí, se tornavam espaços exclusivamente comerciais, lugares com canteiros. E ali era ótimo, porque a gente chegava com uma parafernália de mapas, de cartazes com letras feitas em normógrafo. Por exemplo: pegamos extratos do discurso contra o colonialismo de Aimé Césaire, frases do Luther King; o Roberto K-zau fez para nós desenhos da Angela Davis, dos Panteras Negras, do Mahatma Gandhi, do Malcolm X. A gente colocava aquilo nas praças, levava pregador e pregava nas árvores.  (AMAURI MENDES PEREIRA, 2007, pp.197-198)

 

Tratava-se de um tipo de mobilização corpo-a-corpo, com a vantagem de estar bem próximo as pessoas, mas com a desvantagem de ter um alcance de público bastante reduzido. Sem falar no risco de embates com a polícia ou com grupos opositores contrários as propostas apresentadas nos “megafones de latão”.  Este corpo-a-corpo também era realizado através de ações culturais, que buscam mobilizar a juventude negra em torno da música e das tradições africanas.

Esta forma de mobilização tem sido vista pelo movimento negro e por alguns analistas como uma prática cultural que, pelo fato de não ser uma prática política, contribui pouco com a luta antirracista. Para Hanchard (2001), práticas como esta foram responsáveis pela baixa efetividade do movimento negro brasileiro em romper com a hegemonia branca, que se sustentava no mito da democracia racial, cuja dinâmica foi a principal responsável pela invisibilidade do racismo. Para o autor, o movimento negro esteve preso a um tipo de “culturalismo” que impediu a politização do tema e a formulação de políticas públicas de inclusão mais efetivas.

Entre as dimensões cultural e política, estavam as ações do movimento negro no campo da educação. Já numa postura fora da rua, mas ainda no corpo-a-corpo, alguns militantes buscavam a conscientização negra na escola. Trabalhando a autoestima negra e o reconhecimento da contribuição do negro para a história do Brasil. Conforme nos conta o relato a seguir:

 

E aí a gente começou a adotar uma prática. Antes de começar as palestras, perguntava: “Quem é preto aqui?” Ninguém. “Ah, não tem preto?” Aí, no final, depois que a gente mostrava toda essa história do negro, a gente perguntava: “E agora vamos ver: quem é negro aqui?” Todo mundo levantava o braço. E assim a gente foi aprendendo com eles. Nós não estávamos na periferia, no interior, só para ensinar, foi um aprendizado. E, com a minha máquina, comecei a fazer fotos deles também na periferia. Depois eu retornava com essas fotos e meu projetor de slides, estendia um lençol no meio da rua, e eles foram se acostumando a se ver. (MUNDINHA ARAÚJO, 2007, p.205)

 

Olhando agora o movimento negro exclusivamente no campo político, mas ainda com ações de corpo-a-corpo e parcialmente extra-institucional, as marchas aparecem como uma estratégia de ação bastante profícua, a julgar pelos resultados obtidos com a Marcha contra a Farsa da Abolição, em 1988, e a Marcha Zumbi dos Palmares, em 1995. Em ambas, foi possível mobilizar grande número de ativistas e ainda atrair a atenção da grande mídia para os protestos que visavam, sobretudo, denunciar o racismo no Brasil.

No entanto, conforme já foi destacado, quando analisamos a Marcha de 1995 e o resultado obtido por ela com a criação do GTI (que oito anos depois se tornaria a SEPPIR), temos na verdade uma estratégia mista, que envolveu ações extra e intra institucionais. Ou seja, de um lado havia a articulação junto as organizações negras e aos sindicatos para que houvesse o maior volume possível de pessoas na marcha, de outro, havia as articulações dentro do Estado para que o presidente FHC recebesse a marcha e assinasse o compromisso com o GTI.

 

A gente articulou bem em Brasília o apoio do governo do Cristovam Buarque, que era o governador. Foi um período em que eu estava fazendo esse tipo de coisa: viajar, falar para as pessoas, ir a São Luís, dizer que a Marcha era real... Porque, quando chega a hora de mobilização de movimento negro você não sabe os fantasmas que aparecem. Então não é fácil fazer uma coisa assim. Qual foi a vantagem que nós tivemos em 1995? O governo era Fernando Henrique Cardoso, e aí PT e CUT fizeram a sua avaliação de que poderia ser interessante a Marcha. Mas eles, com isso, não estavam aceitando uma pauta de reivindicação negra ou a autonomia do movimento negro. Eles estavam era de olho na oposição a Fernando Henrique. Já havia boatos de gente que ia gritar na Marcha “Fora FHC!” – 1995, que era o primeiro ano de Fernando Henrique. (EDSON CARDOSO, 2007, pp.338-339)

 

Se a marcha não tivesse contado com a articulação feita dentro do Estado, provavelmente aqueles “fantasmas que aparecem” poderiam ter prejudicado a criação do GTI. Neste sentido, quando o movimento negro assume o Estado como “mais uma arena política”, ele entende que muitas vezes – como no caso da criação do GTI – a ação extra-institucional sozinha pode não ser o melhor caminho a ser seguido. Este entendimento vem para o movimento negro desde as primeiras experiências no Estado de São Paulo, ainda na época do governo Montoro, quando foi articulada a criação do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, em 1984.

 

Logo no início do governo havia grande insatisfação, porque não havia participação efetiva do negro dentro do governo, muito pouca gente havia conseguido ser nomeada no governo. Mas duas pessoas estavam no Palácio: eu, que trabalhava com assuntos políticos, e o Hélio Santos, que trabalhava no cerimonial do Montoro. Mas eu pude observar, por exemplo, que as mulheres tinham criado um conselho, o Conselho da Condição Feminina. E a partir dessa experiência eu sugeri à Secretaria de Assuntos Políticos, ao chefe de gabinete Carlos Figueiredo: “Por que não criar um conselho do negro?” Ele achou interessante a ideia e me deu sinal verde. Comecei a trabalhar nisso. Conversei com o Hélio, que achou interessante, e conversei com outros colegas: o Antônio Carlos Arruda e o Genésio. E nós quatro começamos a trabalhar politicamente essa ideia. [...] Mas entre a decisão de criar o Conselho e ele de fato ser criado, isso compreendeu um processo, porque as pessoas viam a criação de um órgão de governo do negro como um órgão que ia contribuir para o racismo. Naquela época ainda era vigente a Lei Afonso Arinos. Então, a tarefa toda era convencer os outros de que aquele órgão ia fazer política para combater o racismo. E, como vivíamos no Palácio, a gente aprendeu logo uma coisa: que era importante pautar as ações do movimento dentro da agenda governamental, da agenda política do país. Começamos a trabalhar com esse olhar. (IVAIR ALVES DOS SANTOS, 2007, pp.215-216)

 

Em outra oportunidade, durante conferência mundial contra o racismo, em Durban, a proximidade com os representantes do governo brasileiro possibilitou um acesso que dificilmente o movimento negro teria se não circulasse dentro do Estado. Como narra Edna Roland, que foi nomeada relatora da conferência:

 

Quando eu achava que tinha alguma sugestão para fazer, grudava no ouvido dele, passava por escrito: “Embaixador, diga isso, faça isso...” Tinha que dar instrumentos para que ele pudesse intervir no debate. E ele, inclusive, me solicitou, num determinado momento, para que eu fosse negociar pelo Brasil, participar de alguns grupos que estavam negociando textos ou conceitos. (EDNA ROLAND, 2007, p.381)

 

Em todas as experiências de ativismo intra-institucional, podemos notar que alguns aspectos são fundamentais para o sucesso da militância nesta arena política: (1) atenção aos espaços na agenda governamental; (2) antecipação aos eventos que envolvam decisões governamentais; (3) proximidade com as pessoas que tomam as decisões; e (4) capacidade de diálogo com diferentes perfis políticos. Apesar de conterem o risco iminente de serem cooptados ou de não atenderem precisamente a demanda do movimento negro, não podemos deixar de reconhecer os resultados obtidos pelo que eu denomino aqui de ativismo intra-institucional. Esta inserção do movimento negro no sistema político é uma marca da luta antirracista no Brasil e pode ser um dos fatores que o diferenciam de outros movimentos deste gênero em outros países.

 

Mobilização de recursos

 

A abordagem na mobilização de recursos nos ajuda a compreender como as organizações de movimento social (OMS) adquirem recursos para desenvolver suas atividades e para atingir seus objetivos. Para isso, “[...] cada OMS deve possuir recursos, incluindo legitimidade, dinheiro, instalações e o trabalho, que são controlados por indivíduos e outras organizações” (MCCARTHY e ZALD, 1977, p.1220). Neste sentido, de forma similar ao que ocorre com estrutura e a estratégia, a mobilização de recursos no movimento negro brasileiro pode ser pensada também em duas fases.

O financiamento do movimento negro também tem se ampliado nas últimas décadas com o boom de ONGs negras, notadamente nas décadas de 1980 e 1990, cujo recebimento de recursos advém principalmente do orçamento público e da cooperação internacional (HERINGER, 2001). Entretanto, para atingir este estágio, o movimento teve que amadurecer a ideia de financiamento externo junto a militância. Os primeiros financiamentos, ainda nos anos 1970, ocorrem de forma não planejada e com forte resistência por parte de alguns militantes.

 

Em 1977, um norte-americano chamado Jimmy Lee, que tinha vindo para o Brasil jogar basquete no Flamengo, propôs conseguir recursos da Interamerican Foundation para a compra de uma sede. Esse recurso viria a fundo perdido, porque a Interamerican era do congresso norte-americano e emprestaria o dinheiro para a compra de uma casa. E o Benedito Sérgio comprou a sede na avenida Mem de Sá, 208, e ali se instalou o IPCN. [...] E foi um drama para o Benedito Sérgio comprar a sede, porque as pessoas eram contra, achavam que aquele dinheiro era da CIA, que era meio perigoso... Eu mesmo fui um desses. (YEDO FERREIRA, 2007, p.145-146)

 

Por conta da Guerra Fria e do momento político que o país atravessava nos anos 1960 e 70, havia muita desconfiança dos movimentos sociais em relação as ações governamentais (GOHN, 1995). Principalmente dos EUA, que apoiavam os regimes militares na América Latina. Com o início da abertura política, durante o governo Geisel, as desconfianças diminuíram e algumas organizações negras começam a visualizar na cooperação internacional um importante aliado.

 

Então, começou a surgir a semente, a ideia de construção do Ceap. Na verdade, é um trabalho que vem desde 1979, um trabalho que tem mais de 25 anos, embora como instituição formal, Ceap, tenha sido criado em 1989. Vai ser a primeira ONG negra, na verdade, com características de ONG. E abriu aquela polêmica no movimento negro: “dinheiro internacional!” Aquelas confusões todas, desconfiança até dizer chega. Hoje está todo mundo nesse barco, mas naquela época a gente apanhava muito porque tudo tinha desconfiança. [...] A CUT e todo mundo nasceu desse tipo de recursos que foram articulados pela chamada cooperação internacional, que tinha uma agenda de democratização do país e da questão dos direitos humanos – foi nisso que nós entramos. Aí foi uma conversa do Rubinho – que era um amigo meu, antropólogo, que trabalha com os indígenas, do Museu Nacional –, que acabou me introduzindo nessa área da cooperação internacional, que já tinha ajudado a Associação de Ex-Alunos – tanto que ela tinha uma estrutura. (IVANIR DOS SANTOS, 2007, p.288-89)

 

Mesmo com a abertura para o financiamento externo, colocando “todo mundo nesse barco”, isso não eliminou as polêmicas em torno da cooperação internacional. Principalmente no campo das relações raciais, onde pairam suspeitas sobre a manipulação das agências internacionais no que diz respeito aos parâmetros de classificação racial no Brasil. Para refutar as acusações que pesam sobre as fundações norte-americanas, Telles (2002, p.145) aborda o caso da Fundação Ford, que “[...] é o maior suporte financeiro das organizações do movimento negro no Brasil e o maior apoio filantrópico das pesquisas sobre relações raciais”. O autor argumenta que a fundação não impõe modelos raciais aos projetos que financia, mas que parte destes projetos visa “[...] fortalecer as lideranças negras, patrocinando treinamento, tal como cursos de administração pública, campanhas eleitorais e em língua inglesa” e ainda que o programa de Direitos Humanos pode “[...] fornecer lições importantes para seus pares brasileiros” (TELLES, 2002, p.151, grifos meus). Ou seja, se não podemos acusar a Fundação Ford de difundir modelos de classificação racial ou de luta antirracista, podemos sim, dizer que ela pode exercer grande influência neste processo.

Assim, ao contribuir com a formação de ativistas, com o intercâmbio entre organizações internacionais e com as lições jurídicas da luta antirracista americana, a Fundação Ford amplia os canais de diálogo entre o movimento negro e a cooperação internacional, pois todo este background acumulado se traduz em novos projetos de captação de recursos, que são elaborados de acordo com as expectativas destas fundações, cuja lógica de elaboração é de domínio restrito. Neste sentido, as organizações de mulheres negras são as que mais se destacam.

 

No ano seguinte, acho que já em 1990, saiu o financiamento da Ford para o SOS Racismo. Foi o primeiro grande financiamento; o da Coalition foi um pequeno, para essa viagem, aí veio a Ford, que foi um grande financiamento. Ao mesmo tempo, Carmem Barroso, que foi da Fundação Carlos Chagas no Brasil e tinha ido para os Estados Unidos dirigir um programa de população, veio ao Brasil e estava em busca de projetos interessantes e instituições para financiar. Ela tinha sido minha professora de metodologia científica na USP, quando estudei ciências sociais. Procurei Carmem para falar que nós estávamos com essa organização de mulheres negras, e se a Fundação MacArthur poderia nos apoiar. Ela demonstrou interesse e pediu que a gente elaborasse um projeto. A Fundação MacArthur foi o segundo grande financiamento. A Ford foi financiando o Programa de Direitos Humanos do Geledés e a Fundação MacArthur, o Programa de Saúde. (EDNA ROLAND, 2007, pp.283-284)

 

Esta inserção não se restringe apenas as fundações norte-americanas, mas inclui também as empresas multinacionais e o governo brasileiro.

 

Temos tido apoio institucional da Fundação Ford desde 1991, 1992. Acho que o primeiro financiamento nosso foi por uma organização internacional que lida com a área da saúde, a Coalition. Historicamente nós fomos, ou temos sido, apoiadas por Coalition, Fundação Ford e Fundação MacArthur e tivemos também alguns projetos com o Ministério da Justiça – porque temos um programa de direitos humanos que é bastante vasto –, a Fundação Cultural Palmares, a Fundação Levi Strauss, a Kodak do Brasil, a Xerox e a Fundação Bank Boston – esses são mais recentes. (SUELI CARNEIRO, 2007, p.280)

 

Importante ressaltar que mesmo diante deste canal de financiamento aberto pela cooperação internacional, muitas organizações negras ainda enfrentam as mesmas dificuldades identificadas por Fernandes (1965) nos anos 1960, que é a falta de apoio político e de recursos financeiros. Muitas delas sobrevivem de doações ou recursos da própria militância. Quando falamos em mobilização de recursos no âmbito do movimento negro brasileiro, temos de considerar a existência destas duas realidades. E isso vale também para a estrutura e a estratégia do movimento. Assim, tomando emprestado os dois perfis cunhados por Risério (2007) e os três quesitos analisados nesta seção, podemos definir a organização do movimento negro de acordo com o Quadro 1.

 

Quadro 1 – Perfis organizacionais do movimento negro brasileiro

 

Perfil

Quesitos

Racialismo de Esquerda

Racialismo de Resultado

Orientação Geral

Mudança radical na sociedade, alinhamento político de esquerda e ruptura com o sistema capitalista

Mudança incremental na sociedade, alinhamento político de centro-esquerda e manutenção do sistema capitalismo

Estrutura

Tomada de decisão colegiada, com baixo grau de verticalização e pouco orientada para o atingimento de resultados

Tomada de decisão centralizada, alto grau de verticalização e muito orientada para o atingimento de resultados

Estratégia

Protestos de rua, marchas, distribuição de panfletos e conscientização nas escolas

Marchas, conscientização nos meios de comunicação, articulação política

Mobilização de Recursos

Doações, governo e recursos próprios

Doações, empresas, governo e cooperação internacional

Área de Atuação

Mais próximo da comunidade, com escopo local, regional e nacional e movimentação extra-institucional

Mais próximo das elites, com escopo regional, nacional e internacional e movimentação intra-institucional

Fonte: elaborado pelo autor.

 

Temos, portanto, dois perfis organizacionais que coexistem no movimento negro brasileiro. Um deles mais alinhado aos primeiros momentos do movimento negro em que prevalecia uma orientação de esquerda, com estruturas mais horizontais e estratégias de protesto na rua, focadas mais na relação com comunidade e no contato corpo-a-corpo para conscientização racial. O outro perfil é mais estruturado, com estratégias de articulação política dentro dos espaços de poder dos partidos políticos e do Estado, com mais recursos financeiros e uma busca planejada por resultados. Ambos se igualam no reconhecimento da negritude como fruto de uma ancestralidade africana, que cultua os valores da raça negra e, por isso, busca preservá-la rejeitando a existências dos mestiços.

Embora o perfil racialista de esquerda ainda oriente o funcionamento de algumas organizações negras, aos poucos ele vai dando lugar ao perfil mais estruturado do racialismo de resultados. Conforme este último vai ganhando espaço, amplia-se também a participação negra nos diversos setores da sociedade, principalmente nos partidos políticos (agora de olho no voto negro) e no Estado que começam a criar e/ou amadurecer secretarias e ministérios destinados a causa racial. O que também aumenta as chances de uma militância mais presente nestes espaços de decisão e de poder.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A dinâmica do Atlântico Negro nos leva a pensar nos movimentos negros dos países pós-coloniais que se conectam ao atlântico como sendo um mero reflexo das lutas globais travadas contra o racismo. Em especial as que ocorrem nos EUA, pois como afirma o próprio Gilroy (2001, p.23), “[...] os negros de todos os lugares são instados cada vez mais a aceitar e internalizar versões de negritude de origem norte-americanas e que circulam através de agentes corporativos, chamados a desenvolver remotos mercados para o ‘software’ africano-americanos”.

Entretanto, diferente das interpretações mais comuns que falam de um movimento negro brasileiro mimético, que tende a copiar o movimento dos direitos civis em suas práticas de mobilização e ação, observamos que isso não é totalmente verdadeiro. Podemos até admitir que existam pontos de convergência, mas há também pontos de afastamento que fazem da luta antirracista no Brasil uma experiência singular. Pelo diagnóstico e prognóstico, eles se aproximam na medida em que trabalham dentro da perspectiva racialista e entendem que o melhor “remédio” para lidar com as desigualdades se dá pela adoção de ações afirmativas, tendo as cotas como ponta de lança destas ações. Porém, quando comparamos a motivação, a ressonância e principalmente a organização, observamos um afastamento.

Nos EUA a luta antirracista se estabeleceu a partir de um movimento de base, envolvendo diversas comunidades negras em diferentes segmentos sociais e religiosos, com formas de ação majoritariamente extra-institucionais. No Brasil esta luta assume outro formato, pois tende para uma luta de vanguarda, articulada por organizações negras com baixa aderência nas comunidades e formas de atuação majoritariamente intra-institucionais.

Observa-se que os maiores avanços do movimento negro brasileiro se deram a partir do racialismo de resultados, que se alinha ideologicamente ao ativismo transnacional, mas desenvolve sua própria forma de organização com alianças partidárias e burocráticas, que o tornaram mais politizado e menos culturalista. Paradoxalmente, esta mudança se aproxima do prognóstico de Hanchard (2001), quando ele defende uma postura política no lugar do culturalismo, mas ao mesmo tempo se afasta quando este mesmo autor alerta para a necessidade de o movimento negro se tornar menos diásporico e mais paroquial. Com efeito, se no campo organizacional o movimento não enfrenta problemas, talvez seja no campo ideológico que ele terá seu maior embate, pois será justamente o paroquialismo seu maior obstáculo durante o processo de adaptação local.

Embora o discurso da “democracia racial” tenha sido superado pelo movimento negro brasileiro, ele ainda se faz presente em diversos segmentos da sociedade. Apesar de muitos analistas atribuírem este fenômeno à uma suposta excepcionalidade do caso brasileiro, Sansone (1996) mostra que o fenômeno da mestiçagem está presente em países como Venezuela e Colômbia onde o mestiço é chamado de cafe con leche, em Porto Rico de trigueño, em Santo Domingo de indio quemado e no Haiti de prietos. Assim, podemos dizer que no âmbito da sociedade brasileira os processos de adaptação local do frame racialista pode encontrar dificuldades ao se deparar com um tipo de frame não-racialista alinhado a ideia de mestiçagem. Com efeito, um tema emergente a ser investigado seria analisar este mesmo fenômeno nos demais países do Atlântico Negro, como os países africanos, latino-americanos e caribenhos, o que poderia revelar dimensões de luta e organização interessantes para compreendermos melhor nossa própria luta antirracista.

No próprio berço do frame racialista, os EUA, esta ideia de mestiçagem vem se desenvolvendo lentamente a partir dos anos 1970 quando ocorre um aumento do número de casamentos inter-raciais e o consequente aumento do número de crianças mestiças (mixed race). Este novo segmento começa a questionar o sistema binário de classificação (SPICKARD, 1992) e a reivindicar o direito de escolher livremente sua identidade étnica sem ser constrangido pelo critério da hipodescendência representado pela one drop rule (ROCKQUEMORE e AREND, 2002). Isso tem gerado ações coletivas de caráter multirracial que nas últimas três décadas têm se organizado para modificar as informações do censo americano e incluir a população mestiça como categoria autônoma, desvinculada do antigo sistema de classificação binário black/white (SPENCER, 1997). As ações de organizações como a Association of MultiEthnic Americans (AMEA), têm pressionado o governo americano a adotar mudanças neste sentido. Entretanto, estas organizações têm enfrentado resistências por parte dos negros, que encaram esta atitude como prejudicial porque divide a “comunidade negra” tornando-a menor e mais fraca. Por parte dos brancos, há uma resistência em mudar o status quo da one drop rule, criada pelos próprios brancos para manter os negros e seus descendentes na subalternidade (LEE e BEAN, 2004). O que nos chama atenção nesta dinâmica é que ao mesmo tempo em que o governo brasileiro tem sido pressionado para criar um sistema de classificação racial bipolar similar aos EUA, este país tem sido pressionado para criar um sistema similar ao nosso. Uma análise comparativa Brasil-EUA poderia revelar porque ocorre este movimento inverso e como esta dinâmica será colocada em circulação no Atlântico Negro.

Finalmente, um tema provocador que esteve à margem da nossa análise – e que na verdade tem se colocado à margem da maioria dos estudos que tratam das relações raciais – é o chamado antirracismo sem raças. Como afirma Gilroy (2000), a raça pode ser um conceito “tóxico” que contamina e enfraquece a sociedade como um todo. Pensar o mundo a partir de raças, seja para o bem ou para o mal, não melhora em nada nossa percepção sobre as diferenças humanas, pois sustenta um constructo colonial elaborado justamente para aprisionar determinados grupos numa posição subalterna. Numa época em que a genética tem provado não existir diferenças significativas entre os seres humanos do ponto de vista biológico e diante do crescente número de mestiços, frutos de séculos de cruzamentos interétnicos, atribuir uma classificação humana baseada no fenótipo ou na ancestralidade tem se tornado cada vez mais difícil de ser sustentada. Coloca-se, portanto, o desafio de pensar as relações sociais como fenômenos mediados pela cultura e não pela cor da pele ou pelos traços físicos que as pessoas trazem em seus corpos. Ainda que estes corpos sejam maleáveis a ponto de poder transformá-los. Modelos de mundos alternativos talvez possam vir a inspirar os próximos modelos de organização do século XXI.

 

 

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DATA DE SUBMISSÃO: 01/10/2017

DATA DE APROVAÇÃO: 24/07/2018