Reflexões feministas sobre o julgamento de Bolsonaro
O mundo voltou-se para Brasília em setembro, acompanhando o eletrizante julgamento no Supremo Tribunal Federal de uma tentativa de golpe de Estado, no mês em que o Brasil celebra sua soberania, liberdade e os avanços democráticos.
O julgamento do ex- presidente Bolsonaro e vários generais foi um marco jurídico na história do Brasil.
Como feministas, compreendemos este julgamento, transmitido ao vivo, como uma vitrine de como poder e masculinidade se entrelaçam na política brasileira. Tanto a trajetória política de Jair Bolsonaro, marcada por discursos eivados de violências machistas, homofóbicos, misóginos, racistas e capacitistas, quanto a própria tentativa de golpe de Estado, liderada por homens brancos e não tão jovens, é reveladora do projeto político misógino e conservador da extrema política brasileira e mundial.
Também o júri composto por quatro homens e apenas uma mulher, que deixou clara em sua resposta à demanda de aparte por um dos colegas, que precisava falar para “recuperar os dois mil anos em que as mulheres estiveram caladas”. Sua própria presença - hoje, a única mulher no STF - revela a dificuldade do acesso das mulheres aos espaços de poder.
A presença marcante, o estilo de fala e o voto decisivo pela condenação de Jair Bolsonaro como “chefe da quadrilha golpista” da ministra Cármen Lúcia foram celebrados intensamente nas redes feministas. Ao iniciar seu voto, ela citou o poema "Que país é este?”, de Affonso Romano de Sant’Anna (1937–2025), apontando para os paradoxos que o julgamento revelou sobre a política brasileira:
“Uma coisa é um país, outra um fingimento. Uma coisa é um país, outra um monumento. Uma coisa é um país, outra o aviltamento… Esse é o país do descontínuo, onde nada congemina.”
Justiça, gênero e quebra de protocolos
A dinâmica do julgamento, desloca a análise para além de seu aspecto jurídico estrito e nos convida a uma reflexão feminista sobre o funcionamento do sistema judiciário no que tange ao lugar e aos julgamentos envolvendo as mulheres e grupos subalternizados no Brasil. Questões fundamentais emergem: como as instâncias judiciais têm validado ou tolerado discursos preconceituosos sem resposta institucional imediata? Em que condições é possível romper protocolos para enfrentar violências simbólicas no espaço público?
O papel das instituições democráticas — partidos, movimentos sociais e sociedade civil organizada — torna-se ainda mais relevante nesse contexto. São elas que devem sustentar a agenda de enfrentamento a práticas de opressão, sejam elas simbólicas ou estruturais, como têm feito movimentos feministas, coletivos de mulheres e organizações de direitos humanos.
Democracia como condição de pluralidadeAo proferir seu voto, Cármen Lúcia ultrapassou o legalismo técnico para reconhecer dimensões simbólicas, sociais e políticas do julgamento. Sua fala defendeu uma cultura democrática que não naturaliza o insulto nem admite a instrumentalização do discurso discriminatório como prática política.
Por alguns instantes, vozes hostis e excludentes foram silenciadas. E ficou evidente que tais discursos constituem parte estruturante das relações de poder. O julgamento, portanto, não apenas produziu efeitos jurídicos, mas também abriu espaço para um novo registro discursivo no interior da arena pública.
Precedentes para o futuro democráticoA decisão de setembro de 2025 estabelece precedentes legais relevantes, ao valorizar a responsabilização por discursos dirigidos contra grupos vulnerabilizados. O marco jurídico representado por esse julgamento redefine limites para a democracia brasileira, ao reconhecer que sua preservação inclui necessariamente a proteção das vidas e existências que dela mais dependem.